segunda-feira, 14 de abril de 2008

Escritoras Negras Baianas: Uma literatura de Resistência e Interpretação de Si

Em relação à mulher negra, não é difícil constatar que na história literária brasileira, do período colonial ao contemporâneo, perpassa um discurso sobre o outro, no qual se institui uma diferença confundida e assumida como desigualdade e inferioridade. Essa representação é nutrida pelos estigmas e preconceitos e pelos mecanismos de racismo que permeiam os diversos segmentos sociais. Ela também reproduz estereótipos que a inferiorizam e a subjugam, através de qualitativos, imbuídos de imagens do seu passado de escravização, de subalternidade, de exploração, de sensualidade, de libido e de virilidade exacerbadas. Há, pois, na tradição literária, um reforço de atributos e papéis sociais que a animalizam. Além disso, é comumente associada ao mal, ao feio, à perdição, à desgraça e à morte.
Há de se considerar, no entanto, que existe uma presença resistente de escritoras negras, que, apesar de suas obras não estarem presentes na história literária, nos circuitos editoriais e mercadológicos e de não serem respaldadas pela crítica, elas inventam uma outra representação de si, de suas histórias e dos mundos que lhes circundam. Temas como culturas afro-brasileiras, ancestralidades, escravidão, formas de resistência, amor, liberdade, identidades, poder, solidão, sofrimentos etc são continuamente (re) inventados em sua produção literária.
Nomes, tais como Rosa Egipcíaca, Teresa Margarida da Silva, Maria Firmina dos Reis, Antonieta de Barros, Auta de Souza, Maria Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, Miriam Alves, Alzira Rufino, Esmeralda Ribeiro, Geni Mariano Guimarães, Sônia Fátima, dentre outros, provocam estranhamentos e, concomitantemente, nos levam a pensar que a sua ausência na tradição literária já são indícios das relações desiguais étnico-raciais e de gênero entre nós. Na Bahia, a literatura, dentre outras, de Aline França, Fátima Trinchão, Wanda Machado, Rita Santana, Lita Passos, Mel Adún, Jocélia Fonseca, Elque Santos ressignifica as africanidades, histórias e vivências, bem como tecem afirmativamente uma escrita de si e uma auto-representação.
A literatura de escritoras negras baianas constitui-se, em verdade, como práticas que provêm da busca de descentramento e de deshierarquização de saberes e de seus processos de elaboração, bem como de enfrentamento das múltiplas formas de interdição, ou seja, de impedimentos e de não possibilidades de produção e de divulgação da sua literatura. Suas obras, portanto, nos remetem a pensar que necessário se faz provocar abalos no cânone literário, descolonizando a identidade autoral e forjar caminhos de incluí-las nos diversos cenários das Letras, inclusive nos currículos escolares e no fazer pedagógico.
***Ana Rita Santiago da Silva é doutoranda em Letras (UFBA). Atualmente desenvolve a pesquisa Escritoras Negras Baianas: Vozes des (veladas) sobre afro-descendências. E-mail: asantewaa@terra.com.br.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O que fica

A inconfidência das palavras. Não falam. Não gemem. Tateam sobre o sentimento.
Não dizem. Se quer calam.
Porém, corroem o tempo. As únicas que o contém em si.
Por elas ele não passa. Fica. Como quem inicia uma despedida, mas desiste. Venha. Vamos. Fique.
E ele obedece, não resiste.
Os lençois. Os travesseiros.
Todos lhe querem. Todos lhe cobrem.
E ela - abusada palavra - recolhe as flores, as frases. Todas por ela - que não tem voz e nem lugar.
Se perdem. Invisíveis, coitadas. Admiradas e usadas por poetas. Pobres meretrizes.
Possuem as horas, esticam o tempo. Mas delas sobram apenas os suspiros de quem não disse, mas escreveu.

**Soul Sócrates é jornalista.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Cordeiros de Deus que tirais o pecado do mundo: tendes piedade de nós

Cordeiro [Do lat. vulg. cordariu.] S.m 1. Filhote ainda novo da ovelha; anho. 2. Prato feito com ele. 3 fig. Pessoa mansa e inocente.

A voz off no começo de Cordeiros ( Amaranta Cesar e Ana Rosa Marques), ilustra bem o conteúdo do filme. A massa amorfa que pula atrás dos trios elétricos não tem nome, identidade, cor e nem idade. É apenas uma massa, composta por uma espécie de átomos, divisíveis, no entanto invisíveis socialmente.
E é justamente dessa questão que o filme se ocupa. Em meio à catarse coletiva provocada pelo carnaval, as diretoras buscam histórias comuns, ordinárias, que ocupam uma "importância" mínima na cadeia carnavalesca, ou seja, o lado mais fraco e menos visível da indústria do carnaval baiano: os cordeiros - homens e mulheres, em sua maioria negra vindos da periferia, que seguram as cordas dos blocos em troca de R$ 15,00 por dia, incluído transporte e alimentação.
Mas o maior mérito das diretoras é humanizar personagens marginalizados, dialogando com eles, transformando-os em sujeitos de um filme, e não em objetos - muito comuns nos documentários sobre "minorias". As cineastas vão à busca de dramas pessoais, histórias pontuais, apontando contradições, crises e afirmações de identidades.
Porém, não se trata de dá voz ao outro, e sim que exprimir deles, colocações e imagens correspondentes com o pensamento das "autoras", já que todo documentário é um discurso autoral. Ao mesmo tempo em que expõem as desigualdades, que até certo ponto são agravadas pelo carnaval, as diretoras deixam claro uma espécie de consciência social por parte dos cordeiros, que repetem a todo tempo que sem eles não haveria carnaval, não obstante, como precisam de dinheiro, carregam corda para os brancos.
E são realmente essas contradições que são expostas no filme, através de histórias particulares, que se misturam a tantas outras. Todavia, Amaranta e Ana Rosa vão na contramão das grandes emissoras de TVs que cobrem e exportam as imagens do carnaval baiano,( no qual os grandes artistas e as "pessoas bonitas" dos blocos são protagonistas) retratando as individualidades sem sensacionalismo e sem recusa em ouvir e contar histórias aparentemente desinteressantes.
Filmado durante três carnavais, o filme mergulha no subterrâneo da folia, dando visibilidade a pessoas amorfas, produzindo antes de tudo um documentário ativo, cheio de questionamentos sócio-ideológicos. Elas deixam de lado o modelo griesoniano em busca de questões especificas e pontuais, o qual, o aproxima do modelo sociológico.
Cordeiros é quase um estudo as avessas do carnaval baiano, ou melhor, um pequeno esboço das contradições sócio-cultural e ideológica da festa, mostrando trabalhadores, que se apertam nas cordas, para proteger parte de uma sociedade que os expurgam e não os vêem. E se compararmos Cordeiros com outros filmes que têm o carnaval como história, iremos perceber a importância do filme enquanto discurso ideológico. Tanto Ó Paí Ó (Monique Gardenberg) quando 5 na multidão (Belizário França), são extremamente alegóricos em sua composição narrativa em seus discursos.
Essa questão se liga também a escolha das cineastas pela montagem clipada, que ao mesmo tempo, traduz o "espírito" da festa. Contudo elas pecam ao utilizar dispositivos de filmagens dos mais diversos, além de exagerarem na utilização de músicas extra-diegéticas, o que cria, a nosso ver, sensações que deveriam ser "vistas e ouvidas" pelo impacto das imagens e dos sons. Mas isso é o que menos importa no documentário.
O fato mesmo é que as diretoras afirmam os personagens enquanto sujeitos de um filme, retirando estereótipos, e deslocando significados pré-concebidos. Tanto que no final do filme, já nos créditos, todos os personagens são nomeados, ou seja, são de fato personagens, não objetos de um documentário. Por tudo isso, Cordeiros é um filme sem alegoria e sem mitificações. Quase um soco no queixo.

**Chico Alves é jornalista e videomaker.