quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O mordomo, o patrão e a memória

João Moreira Salles é sem dúvida um dos maiores cineastas brasileiros. Quem assistiu Santiago sabe do que estou falando. O jogo metalingüístico como base narrativa levanta a desconfiança de quem ainda acredita na ilusão do documentário com uma reprodução leal da realidade, ou até mesmo numa representação isenta de avaliações morais.No entanto, o filme de Salles não é só sobre questões discursivas, ou sobre questões ligadas a representação da personagem e a construção de sentidos, mas ao mesmo tempo sobre a memória familiar, diga-se de passagem. A proposta do diretor era fazer um filme sobre o mordomo da sua casa, o argentino Santiago Badariotti Merlo. A aventura de Salles começou em 92, na casa do mordomo, já aposentado. Apostando num distanciamento critico, o diretor interfere no cotidiano solitário de seu ex-mordomo, buscando do fundo das suas reminiscências lembranças sobre a Casa da Gávea, onde ambos moraram por quase 20 anos- fazendo ao mesmo tempo um corte horizontal sobre a vida do argentino.Em 92, nota-se um diretor ainda em formação, ansioso, pressuroso e até mesmo insensível. Em busca do plano mais perfeito, da fala mais completa, da expressão dramática mais expressiva, como o próprio diretor explica na narração em off, que serve como guia narrativo, gravada por Fernando Moreira Salles, um de seus três irmãos, o diretor repete inúmeras vezes os planos, as falas, as posturas de Santiago, entretanto só sabemos disso pela dificuldade de Salles.
montar o filme há 15. Talvez.A narração além de apontar para a metalingüística, já que narra a tentativa do diretor em fazer um filme sobre seu mordomo, e consequentemente sobre sua infância, busca reconstruir uma espécie de memória coletiva, ou familiar, a partir da narração de seu irmão, o que só reforça a tentativa de reviver sua infância e a de seus irmãos. O que está em jogo também é a própria natureza do documentário como um produto de reflexão e criação subjetiva, no qual, explicita as regras do jogo e escancara as possibilidades de representação do personagem.A montagem de Eduardo Escorel e Lívia Serpa assinala justamente para esse sentido. Ela recupera fragmentos da filmagem de 92 e acrescenta tentativas de significados para as falas de Santiago, como as filmagens em estúdio de boxeadores e trens, para serem inseridas nas passagens em que o personagem se refere a seu gosto pelo boxe e suas viagens de trem por diversos países. Além de utilizar músicas, filmes preferidos pelo personagem, além de passagens dos escritos de Santiago Merlo.Entre esses escritos está a paixão, quase obsessiva, de Santiago pelas aristocracias mundiais, desde antes de Cristo até a época das filmagens. Escritos esses, que denotam a idolatria da personagem pela grã-finagem, e pela cultura “erudita”, e ao mesmo tempo uma espécie de megalomania, muito fácil de ser recebida pelo público e interpretada como um delírio, por uma mania de requinte. Porém, também assinala, de forma talvez menos direta a formação do próprio diretor, sempre explicitada nas falas de Santiago, que fazia questão de dizer que na Casa da Gávea havia jantares, músicas e pessoas da mais alta sociedade nacional e mundial.E ele, um simples mordomo serviu a uma das mais ricas famílias do país. E no momento das filmagens isso parece repetir-se. Vemos um Santiago impaciente, delirante, ora consciente de seu papel enquanto personagem, ora subserviente ao seu ex-patrão, no qual, Salles faz questão de repetir, quem sabe inconscientemente, em suas perguntas. Santiago obedece como quem se vê em frente do seu senhor.A imaturidade do até então aspirante a cineasta nos impressiona se analisarmos a postura moral do hoje cineasta João Moreira Salles. Basta assistir filmes como Noticias de uma Guerra particular, Nelson Freire e Entreatos, lá sim, parece haver um realizador consciente e maduro. No entanto essa conclusão só foi possível a montagem explicativa de Escorel e Serpa e também ao texto do próprio diretor, no qual explica e explicita sua imaturidade.Em sua narração, ou melhor, de seu irmão, o diretor diz que o enquadramento “ortodoxo”, sem close, sem nenhum tipo de aproximação foi inspirado no filme Viajem ao Japão, de Yasujiro Ozu. Contudo, 15 anos depois o diretor toma consciente de si e afirma o que boa parte do filme nos faz ver: que ali não existe personagem e documentarista, e sim um mordomo e seu patrão.

Chico Alves é jornalista, fã de Eduardo Coutinho e gosta de João Moreira Salles

Um comentário:

Sócrates Santana disse...

Velho Xico. Nunca vou deixar de chamá-lo assim. Sem dúvida, retiro desta obra o que ela tem de melhor: a memória. Uma avaliação social dela é "chover no molhado". A consciência do pobre rico que caí por terra. Ou a consciência do rico que assume a sua condição enquanto tal. Enfim. Sobre o estilo de João MOreira tenho minhas interjeições. Principalmente, sobre ENtreatos. Depois de assistir e conversar com o grande poeta e outras coisas mais, Ismael Teixeira, percebi o quanto aquele filme corresponde ao sentimento daqueles que olham pelo feiche da porta.
Valeu, contudo, para embaralhar ainda mais as concepções e digressões de um filme em fabricação: Idade da Terra/ 20 anos do MST na Bahia, de Diego Lisboa, Ismael Teixeira, Sócrates Santana e Fabrício Jabar...